Arte, meio ambiente e cultura ancestral marcam mais um evento Motirõ na UFPA

O Centro de Eventos Benedito Nunes (CEBN/UFPA) foi palco de mais um encontro do Motirõ (mutirão), programa de letramento socioambiental e ecológico promovido pela Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa (FADESP), em preparação para a trigésima edição da Conferência das Partes da ONU, a COP 30.

A programação gratuita reuniu três convidados especiais: a pajé, ambientalista e escritora marajoara, Zeneida Lima; o historiador Luiz Simas e o carnavalesco Milton Cunha, psicólogo de formação, cuja graduação foi concluída em 1982 na UFPA. Eles deram o tom à programação que trouxe aos participantes o tema “Cultura ancestral e popular: floresta em pé e a sobrevivência dos mitos”.

As boas vindas ao público foram dadas pelo diretor executivo da FADESP, Roberto Ferraz Barreto. “Com imensa alegria, celebramos a quarta edição do Motirõ, um programa que muito tem nos orgulhado. Este é um ano simbólico: em poucas semanas, Belém e o Brasil sediarão a COP30. Mais do que nunca, é essencial que nós, amazônidas, por nascimento ou afeto, tenhamos voz para falar por nós, para nós e sobre nós”, frisou. Segundo ele, um dos principais objetivos da iniciativa é fazer com que a ciência se torne um tema cotidiano, acessível e conectado com a vida das pessoas. “Ciência que não atravessa o social, que não toca as realidades humanas, perde o sentido. Essa visão está no DNA do Motirõ, que nasce da cultura ancestral popular, da floresta em pé e da força dos mitos que nos mantêm vivos. Por isso, somos profundamente gratos aos convidados que aceitaram o convite para compartilhar suas experiências neste espaço”, destacou.

O reitor da Universidade Federal do Pará, Gilmar Pereira da Silva, destacou a importância de aproximar o meio acadêmico das comunidades e das expressões culturais e populares, reforçando o compromisso da UFPA com uma universidade verdadeiramente acessível e inclusiva. “Essa combinação entre o acadêmico e o povo, entre o acadêmico e as artes, entre o acadêmico e a filosofia popular, isso não tem preço”, afirmou. Segundo ele, a instituição busca equilibrar a produção científica de ponta, que vai da pesquisa com combustíveis à inovação tecnológica, em uma atuação enraizada nas comunidades quilombolas, indígenas e extrativistas.

Ele também ressaltou o papel estratégico da FADESP no apoio a projetos que articulam ciência, cultura e impacto social. “Temos feito uma tarefa grandiosa para mostrar ao Brasil e ao mundo que, além de árvores, rios e peixes, aqui há gente. Gente quilombola, indígena, extrativista, empresários, trabalhadores e também a academia”, disse. O reitor lembrou que a UFPA tem atuado intensamente na preparação para a COP30, com eventos e articulações desde o início do ano.

A apresentação inicial foi realizada por Zeneida Lima, que aos 91 anos de idade, emocionou o público, compartilhando sua história de vida e espiritualidade. Assentada como pajé aos 11 anos, ela relatou memórias da infância na casa da família no Marajó, marcada por dificuldades e a força de sua mãe, que “ia pescar e tirar açaí” para sustentar os filhos quando o pai estava ausente.

Ela narrou ainda uma experiência espiritual que marcaria para sempre sua trajetória. “Enquanto eu estava debulhando açaí, eu senti essa brisa mais forte e, de repente, sentaram perto de mim três seres, todos de pele azul, um azul lindo”, relembra. “Eu fiquei assustada, recusei uma bebida que me ofereceram e, em seguida, tive a sensação de ser transportada para outra mata”. Ela contou que ficou desaparecida na floresta, e sua mãe, sem encontrá-la no local, entrou em desespero. A experiência, envolta em mistério e conexão com o invisível, marcou o início de sua jornada como pajé e revela a força das vivências espirituais ancestrais que resistem ao tempo e ao esquecimento.

Na sequência, a conversa com o público ficou por conta de Luiz Antonio Simas, historiador, professor, escritor e compositor, referência nacional nos estudos sobre cultura afro-brasileira, religiosidade e samba. Ele compartilhou uma reflexão potente sobre a importância dos saberes ancestrais e da oralidade como formas de conhecimento e construção de mundo. “Eu venho de uma família que tinha poucos livros, mas era muito musical… quem primeiro me contou histórias foi o tambor, foi a folha, foi o terreiro”, disse, ao lembrar que suas primeiras narrativas não vieram dos livros, mas da natureza e dos rituais. Inspirado pela fala de Dona Zeneida, ele conectou a vivência dela com um mito relacionado a um orixá curandeiro das florestas, um símbolo da força espiritual que atravessa os povos tradicionais.

Para ele, essas experiências não se limitam à resistência: são expressões de reinvenção e criação diante da violência histórica do Estado brasileiro. “O Brasil, como projeto de Estado-nação, com raras exceções, foi projetado para excluir, concentrar riqueza, aniquilar saberes não eurocentrados”, afirmou. Para ele, nesse contexto, as culturas florestais, praieiras, e ancestrais, como a de Zeneida, não apenas resistem, mas “re-resistem”, acentua. “Mais do que cultura de resistência, é cultura de re-resistência, de criação de sentido para o mundo”, concluiu.

Fechando a manhã de diálogos, o Motirõ recebeu Milton Cunha, acadêmico e carnavalesco, doutor em Letras, formado em Psicologia e figura presente na mídia nacional. Ele  compartilhou sua trajetória intelectual e afetiva com a cultura popular, destacando a importância de olhar para os saberes do povo com a mesma seriedade dedicada às tradições acadêmicas. “A cultura popular é uma resposta do povo ao abandono. O povo cria suas narrativas, suas efemérides, sem pretensão, apenas como expressão do valor da vida”, afirmou. Ele relatou como, em seus estudos, utilizou a análise semiótica para interpretar os desfiles das escolas de samba, especialmente os enredos de Joãozinho Trinta, e defendeu que a escola de samba não é apenas história, mas uma narrativa estruturada, com poética e técnica. 

Para ele, o Brasil profundo está nos territórios que criam arte a partir do que possuem, como nas guitarradas, no funk, no trap, nas baterias e nos tambores que ecoam por todo o país. “O tambor nos costurou enquanto povo brasileiro! Ele foi viajando pelas terras brasílis e foi tendo vários sotaques”, ressaltou. Milton defendeu que é preciso uma aproximação da universidade com essas expressões, reconhecendo a sofisticação estética e simbólica do que é produzido fora da lógica hegemônica. “Nós, amazônidas, ribeirinhos, caboclos, temos uma noção de arte e de estética extremamente exuberante, única, autoral”, reforçou. Ao final, celebrou o encontro e a proposta do evento: “Vim aqui para celebrar esse espírito indomável, encantado da nossa gente”.

Texto: Ana Teresa Brasil – Ascom Ciência e Vozes da Amazônia na COP 30

Imagens: Natalia Almeida